terça-feira, setembro 30, 2003

Ídolos do telecomando
Madonna disse uma vez, e muito bem, “Ohhh, sim, sim!”!... Desculpem, cassete errada, agora sim, “A televisão só tem utilidade se for para aparecermos nela.” Foi das coisas mais inteligentes que ouvi hoje, logo a seguir ao “hoje pago eu” do meu colega. De facto, se não aparecemos na televisão, para quê estar a perder tempo a ver outros aparecer ? Talvez por isso considere de entre todos, “Ídolos” o programa mais estúpido, logo, mais didáctico, o melhor programa da televisão portuguesa.
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Sucedâneo um pouco mais soft do velho formato da Private, os famosos castings (espécie de “porno-idolos”), o “Ídolos” apela a um mesmo instinto básico comum a qualquer telespectador, o “voyeurismo”. Se no primeiro espreitava-se o basqueiro das mais ou menos atrapalhadas e inexperientes candidatas despidas, neste, a mesma matéria prima surge vestida, apostada em desviar a atenção para outros dotes. Malta qualquer, que sonha pelo milagre da idolatria instantânea (à carinha bonita, basta juntar um bom corpinho, abanar e já está).
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Com a benção do júri, assustador, experiente, com muito currículo “graças a deus”, isto numa clara alusão aos machões hiper-dotados dos castings da Private que desfloram a ansiedade das aspirantes a porno-estrelas. São os júris, quem se encarregarão de decidir quem e o que é que tele-viciado irá depois consumir. Estão mandatados por ele, sabem o que ele gosta: “Epá, o aspecto vale p’rai 80%! E tu... Por mim podes sair!”. E não é que é mesmo 80%! Os gajos lá sabem.
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O programa mostra-nos o real valor da televisão, o valor honesto e verdadeiro: estamos descaradamente a ver outros a dar barraca através dum aparelho inventado afinal para esse efeito. E dá-nos um gozo do caraças, pondo-nos num embevecido estado semi-vegetativo, de total ausência de pensamento construtivo ou criativo. Tenho a certeza que era essa a intenção do inventor da televisão, criar uma alternativa sólida à vivência pelo cidadão da não menos enfadonha e estúpida política dos partidos. Infelizmente um dia alguém adulterou tudo, julgou que seria um óptimo meio de comunicação, confundindo claramente vegetação com comunicação.
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Dar barraca é saudável e pode ser divertido principalmente se não formos nós a dá-la. Toda a gente já deu barraca para mais ou menos audiência, mas fazer da barraca tempo da antena é que é mesmo bonito.
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A televisão tem sido culturalmente sobrevalorizada ao longo de muitos anos, subvalorizando-se os reais efeitos nefastos que a mesma veio trazer aos terráqueos (terráqueos, faz de conta que sou um observador de outro planeta! Há um herói da Marvel assim. Já não me lembro o nome.). Muitos programas ditos culturais ou de divulgação cientifica, de animaizinhos, não anulam a terrível verdade: ao longo destes encaixotados anos temos sido e continuaremos a ser atrofiados pelo poder esmagador das imagens, intoxicados com publicidade, esvaziados pelas estórias dos argumentistas da Globo, cegos com as interpretações da Sofia Alves, extinguindo-se progressivamente a nossa capacidade de raciocínio, de vivência, e, principalmente, a imaginação, o tal poder imaginativo que só a palavra escrita lida ou ouvida estimula, ao contrário da imagem animada, onde os conteúdos são-nos dados visualmente, de bandeja.
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Imaginemos um mundo sem televisão. O efeito da tragédia do 11 de Setembro (para todos os efeitos, a referência contemporânea mais trágica) não seria mais sentido se apenas tivéssemos tido acesso aos relatos de jornalistas e testemunhas ? As nossas cabecinhas não dariam mais voltas e voltas, tentando imaginar, fazendo a reconstrução mental dos acontecimentos, tornando assim mais intenso o sentimento daquele drama bem real ? Estou convicto que sim. Será mais perturbador imaginar o que devem ter sentido as pessoas no interior dos aviões. O embate dos aviões em sim mesmo, as pessoas a saltar desesperadas, imagens repetidas à exaustão, adquiriram uma dimensão quase secundária, quase ficcional, quase espectacular, aproximando-nos o acontecimento dos olhos, mas afastando-o do, vou dizer, coração. Mas se por acaso tivessem sido transmitidas imagens do interior de um avião, minutos, segundos antes do embate, se tivéssemos tido acesso televisionado às imagens, acredito que essa perturbação, esse sentir doloroso seria atenuado. O que estou a querer dizer, é que a televisão pode ter um efeito pernicioso sobre a nossa capacidade de sentir, de sentir compaixão. Atenua e mascara o que é doloroso, distancia-nos com uma confortável segurança, do drama real. Digo que existe uma diferença muito mais ampla e perigosa entre o escrito “in loco” e o transmitido “in videns”.
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Faz parte do desenvolvimento normal dum indivíduo, mais ou menos regularmente, voluntária ou involuntariamente, testemunhar a estupidez. É saudável. O confronto com tão enraizado veneno pode servir, mais que não seja, para pôr ali os olhos e não ser-se estúpido. Para quem tenta viver o mais afastado possível da estupidez, a televisão pode ser o único elo de ligação com o fenómeno. Assim como um pai deve corresponder ao modelo de virtudes positivas para o filho, a televisão deve ser o modelo inverso, um espelho do ridículo e de maus exemplos que em circunstancia alguma devem ser repetidos na vida real. É para isso que a televisão serve. Daí, quanto mais estúpido for o programa, melhor, mais eficaz. Mas isto, ver televisão e chamo a ver televisão, ver novelas, reality shows, telejornais, publicidade, bigbroderes e ídolos, esta terapia só será recomendável cinco, no máximo 10 minutos diários, posologia esta que deveria ser seguida à risca. Meia hora para casos mais graves. Existem casos em que mestres em yoga-tv, conseguem passar um mês sem tocar num telecomando.
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Em caso de tele-depêndencia, iniciar-se-ia um programa de desmame, reduzindo diariamente 1 minuto (mais seria traumático para o tele-imbecil doente). Acima de tudo, o doente deveria estar consciente do poderoso efeito hipnótico que as imagens têm sobre ele quando, sentado num sofá, após ter pousado o jornal, portanto, intelectualmente inerte. Não deixar-se seduzir pelo telecomando que, como todas as coisas ridículas do mundo, funciona a pilhas. Á falta do melhor do mundo, á falta da visão maravilhosa de uns sapatos de salto alto esquecidos no meio da sala, ter um animal de estimação pode ser uma excelente alternativa ao telecomando, acariciando-se-lhe o pêlo, escovando-o, dando-lhe pedacinhos de fiambre barato. Há pessoas tão tele-perturbadas que já foram vistas a passear de trela telecomandos universais pela Praça da Alegria. Está claro de se ver que o porteiro da maxime vedou-lhes a entrada!
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Qualquer pessoa que não seja crítico de televisão e sinta necessidade de estar frente ao televisor mais que o estritamente necessário ao controlo do seu processo estupidológico, deve rapidamente consultar ajuda médica especializada, o seu gestor de conta, visitar a biblioteca mais próxima, contactar uma empresa de ocupação de tempos livres ou então ir à cozinha comer donuts com leite fresco. Se nada disto resultar, experimente a receita mais eficaz: desligue a televisão da tomada de electricidade.

segunda-feira, setembro 29, 2003

Deus, patrocinador oficial
Os construtores das primeiras carruagens de metropolitano fizeram-nas sem janelas. Afinal, não havia paisagem nenhuma para se ver. Mas as pessoas queixaram-se, e apesar de enterradas a alta velocidade, a dezenas de metros de profundidade, as novas carruagens com janelas vieram acabar com aquela sensação claustrofóbica que sentiam, dando-lhes a ilusão de espaço.
Deus é a janela duma carruagem de metro.

sexta-feira, setembro 26, 2003

Más companhias
Acompanho o meu irmão à matrícula. Portalegre. Aquilo é longe e ele não tem carro. Ele não fez parte dos sessenta e tal por cento dos que entraram para a primeira escolha. Sei que se tivesse entrado para o curso que queria, até era capaz de ir a pé. Só por esse motivo, porque sou contra estes acompanhantes tipo sombra ou anjo da guarda, acompanho-o.
Causa-me uma certa impressão ver miúdas acabadas de sair do liceu, já umas mulherzinhas portanto, acompanhadas sob a alçada dos pais, manas e primas, sempre mais velhas estas companhias, essa espécie de guardiões hormonais, no acto da matrícula, e quiçá depois no primeiro dia de aulas, na entrada para a residência de estudantes, sabe-se lá até onde... Esta geração de miúdas que afinal parecem desenvoltas apenas com as teclas do telemóvel. Fico envergonhado e teclo ás escondidas. Falo destas miúdas porque a universidade vai ser delas numa relação de 5 para um. Os pais dele também lá estão. Os meus só foram companhia quando entrei para a primeira classe, não tenho a certeza. Sei que para a pré-primária estiveram, isso sei. Depois, por aí fora, nunca mais tive companhia. Para quê ?! A parte burocrática sempre foi tratada por mim. Não era só eu, éramos todos assim, uns desenrascados. O tempo nas filas era passado na galhofa espontânea, aquela que só brota naturalmente sem a presença das fantasmagóricas companhias mais velhas. É no mínimo constrangedor saber que aquele gajo de bigodaças lá ao fundo é o pai da miúda ao lado, tão... cheia de dúvidas com o boletim das estatísticas do ministério. É absurdo estar num acto de matrícula onde no ar se respira o perfume rasca da praxe misturado com os perfumes austeros das mãezinhas. Ainda mais agora que existem os gabinetes de apoio ao aluno cujas simpáticas faces visíveis desfilam orgulhosa e elegantemente em traje académico. Mesmo com o calor, as prestáveis não tiram a roupa preta, mas tiram todas as dúvidas e as fotocópias. Que melhores companhias ?
Bagão Félix, paladino da segurança social do século XXI, havia de fazer contas ás horas de trabalho perdidas, e proibir duma vez por todas a entrada dos pais, manas e primas, sempre mais velhas, nos recintos universitários.

quarta-feira, setembro 24, 2003

Cristicida
Oiço na TSF que o Vaticano prepara-se mais uma vez para fazer das suas. Um cardeal qualquer lá do sítio, um cujo nome serviria na perfeição para marca de raticida, irá impôr novas regras quanto ao modus operandis das celebrações liturgicas, vulgo missas (é a mesma coisa não é ?) Se as missas já eram chatas como o caraças, este cardeal amigo, com toda a certeza ateu radical infiltrado, ameaça fazer o favor a toda a humanidade, ao torná-las ainda mais insuportáveis que uma melga filha de Deus a zumbir nos nossos ouvidos ás 4 da manhã. Quer o malandro, que a partir de agora as mulheres deixem de auxiliar o padre durante as homilias (adeus oh saudosas acólitas catequistas de mini-saia), que não se batam palmas (e agora como é que a malta acorda ?), que não se leia outra coisa que não seja a bíblia nas missas (adeus livrinhos do patinhas), exortando todos os fieis, aos que ainda tenham a pachorra e o descaramento de ir à missa, a darem largas ao seu lado bufo, fazendo queixinha á autoridade eclesiástica mais próxima caso o padre fuja a estas e mais outras, parece-me, trinta e tal regras do mesmo calibre!
Eu não faria melhor! Ora, eu e as minhas lunáticas ideias, a exterminação do cristo rei de Almada (a SIC realizou-me o sonho de pelo menos assistir do sofá a tal, numa promoção recente dos ‘Idolos’ onde se mostravam vários monumentos entre os quais o mono gigante vizinho da ponte sobre o Tejo, a ser implodido, um regalo para a vista), o levantamento de todo aquele alcatrão, betão e cera de Fátima e posterior transformação do espaço numa bela floresta só com aparições autorizadas a esquilos, javalis, coelhinhos e outra fauna real, e a conversão de todos as igrejas em espaços de arte, galerias, locais de leitura e de concertos de musica, enfim, medidas que, apercebo-me agora, só serviriam para criar mártires e focos de resistência entre as mentes mais empedernidas que as há muitas. Assim, nas calmas, com a suavidade como só realmente os padres têm no trato, se vai fazendo a grandiosa obra do ateu cardeal Ratzqualquercoisa, cujas discretas medidas em muito contribuirão para a extinção gradual do catolicismo, como um meteoro com efeitos ainda mais devastadores que aquele que exterminou os dinossauros.
Segundo consegui saber, isto não ficará felizmente por aqui. Aguardam-se para breve novas medidas do exterminador cardeal, como sejam a obrigação de todos os fieis saberem de cor e em latim todas as passagens da Bíblia, a prescrição pelos padres de TPC’s (trabalhos para casa) aos fieis (tipo rezar 50 ave marias enquanto fazem a espargata) ou obrigar os padres a proferirem as missas em jejum de 24, 48, 72 horas e assim progressivamente até deixarem de poder ir à praça comprar nabiças para a sopa.
Ave cardeal!

terça-feira, setembro 23, 2003

Finalmente
... O Resgate do Soldado Ryan. É o filme com mais guerra que já vi. Tal como não resistiu em pintar de vermelho aquela menina anónima na Lista de Schindler, Spielberg não resiste em salpicar da mesma cor a camera que filma na praia o caos do desembarque. Sentimento e realismo à la Spielberg. Afinal quem pretende ele enganar ?
... Thomas Moore. Ainda é cedo. Mas do que li, o mais interessante é uma citação de outrém, um monge italiano, parece: “Deus vê-nos com os mesmos olhos com que o vemos a ele.” Parece-me a antítese do filho. Olho por olho, dente por dente, ficamos pois quites, eu e Deus.
... Caminhada. Depois de várias diurnas, uma nocturna. As caminhadas parecem ter cada vez mais adeptos. Várias pessoas determinadas a “mandar uma perna para a frente da outra”, na maioria desconhecidas, propõem-se caminhar assim quase sem mais nem menos por caminhos também desconhecidos. À noite, isto tem ainda menos lógica e não sai mais barato: Poupa-se no protector solar mas gasta-se nas pilhas. Brevemente saberei onde e quando é a próxima.
... Túnel do Marquês. Parece estar tudo pronto para o arranque da grande obra de Santana. Assusta-me ver Lisboa transformada numa grande e moderana cidade Europeia. Lembro-me de ter atravessado Bruxelas de carro quase duma ponta à outra sempre debaixo de terra, por túneis. E um daqueles painéis que publicitavam a obra na Praça do Marquês, mostrando fotos de como era a praça há várias dezenas de anos atrás e que “felizmente” tinha havido “progresso”, só vieram reforçar em mim a convicção de como seria bem mais bonita a cidade naquele tempo, e como podia sê-lo já amanhã, com menos automóveis e sem túneis. Se ao menos isto fosse uma utopia, mas não é!

sexta-feira, setembro 19, 2003

Gibraltar
Deve ser um dos sítios do mundo com o mais alto índice de gente feia por m2. Talvez só Andorra ou a Costa da Caparica consigam rivalizar, mas não têm aqueles bares e pubs geridos por inglesas com celulite na barriga ou ingleses com dermatites seborreicas afixadas em lugares visíveis. O resto, turistas e preços um pouco por todo o lado, um aeroporto e alguns esquecimentos.
Mea culpa. Caí no erro de voltar com outros mesmos olhos ao mítico rochedo. Tinha lá estado há largos anos atrás, naquela que fora a minha mais próxima experiência duma so called lua de mel. Improvisada, correu bem. Então, as horas na fila para passar a fronteira não me pareceram minutos, mas andou lá perto. Então, não estacionei o carro passados alguns quilómetros de trava destrava e segui a pé debaixo do calor que é insuportável. Afinal, quando se está apaixonado, como se é sempre suposto estar numa lua de mel, até Fernão Ferro tem o encanto dum condomínio fechado de luxo. Ilusões à parte, Gibraltar tinha de facto um encanto especial. Ficara alojado no Caleta, hotel com duas vistas fabulosas, rocha e mar, aquilo que Gibraltar era. Haviam também os macacos á solta lá em cima. Vinham comer á nossa mão e depois roubavam-nos os pacotes de bolachas. Era um prazer ser assim assaltado e de manhãzinha, sempre à sombra da paixão, tomar aqueles pequenos almoços continentais servidos como só o sol os sabia servir.
As galerias escavadas nas rochas, grutas, a máquina fotográfica, as mãos, e a cidade lá em baixo. Aquele farol na ponta do rochedo cujo o vento nos empurrava dali para fora, mas principalmente para a rocha e mar, para ambos, rocha e mar, ambos.
Cometi o erro de voltar a um sitio onde já estivera e tinha gostado de estar. Gostado era pouco. Já tinha prometido a mim próprio nunca voltar a um mesmo sítio onde estivera e tinha gostado de estar. Aqueles, os que guardam algures no tempo as recordações, os momentos que julgamos invioláveis.
Nunca vemos a mesma qualquer coisa com os mesmos iguais olhos. Baralhamos tudo, desencantamos tudo. Não é por mal. Mas é mesmo assim.

terça-feira, setembro 16, 2003

A Mosca (reloaded)
Duas moscas são observadas por uma quarta mosca. Estão ambas a sussurrar, interrogando-se a outra porque falam tão baixinho quando àquela distancia é moscamente impossível ouvir a conversa. A terceira mosca já não existe, ou pelo menos já não respira, já não mexe, já não apresenta sinais de vida nem chateia ninguém. Debaixo duma casca de tremoço as moscas:
- Achas que existem moscas que antes de levantarem voo já sabem qual vai ser o próximo local de aterragem ?
- Claro que há, as que têm sorte. Qualquer mosca que caia no erro de fazê-lo, qualquer mosca que perca milionésimo de segundo em tal ou semelhante pensamento, perderá o tempo suficiente que tem para escapar a um mata moscas de plástico, químico ou orgânico.
- Quer dizer que eu, que já tive desse tipo de pensamentos, tenho sorte por ainda estar viva ?
- Esse é o tipo de pergunta óbvia e desnecessária que odeio nas outras moscas. Logicamente que sim! Se estás aqui é porque tiveste a sorte de não estar um mata moscas por perto quando estupidamente pensavas no teu poiso seguinte. Repara que já estamos aqui há quase um centésimo de segundo na palheta. Tempo precioso para fugir. Só não o faço porque me sinto segura debaixo desta casca de tremoço.
- Sim mas no voo de reconhecimento não vislumbrei nenhum mata-moscas de plástico...
- Imbecil mosca, não vês que qualquer objecto é um mata moscas em potência ?
Entretanto ouve-se tossir. A quarta mosca aproximou-se, e empoleirada na borda dum copo, tenta ouvir a conversa. Tosse uma daquelas tosses que nitidamente não está a ser medicamentada, e isso irrita as outras moscas.
- Bem, vou mas é pôr-me na alheta.
- Alheira ? Não me cheira, onde ? Eu vou também!
- Alheta, vou pôr-me na alheta! Aquela macaca ali em cima está a dar granel. A imperial ainda vai a meio e para ajudar à festa a gaja pôs-se a tossir na borda do copo, a parva. Vai dar nas vistas e vamos ser notadas.
- Vamos para onde ?
- Sei lá! Conheço-te de algum lado ? Nunca penso onde vou aterrar antes de levantar voo. Pensei que isso tivesse ficado bem claro! Estavas aqui por acaso e eu aterrei aqui por acaso e conversámos umas baboseiras quaisqueres.
- Não foi por acaso... Na realidade eu ando a seguir-te há muitos segundos. Descobri um padrão nos teus locais de aterragem, uma sequência que sabes muito bem que tens.
- Tás parva ?! Eu nunca penso para onde vou. Ando ao sabor dos cheiros que encontro aqui e ali. Tenho uma certa tara por casas de banhos com autoclismos avariados, mas isso agora não vem ao caso.
Ouve-se um estrondo, as cascas de tremoço estremecem mas todas as moscas mantêm-se nos seus lugares.
- Sim senhor, isso é que é coragem! Nem pestanejaste as asas.
- Chiça que susto! Mas como vi que não voaste, também não voei.
- Estou a ver que és bastante observadora. Esta barulheira foi apenas mais uma imperial que veio para a mesa. Há gajos assim. Esquecem-se de beber as imperiais até ao fim, ou então gostam de beber devagarinho. O gás desaparece e a solução é mandar vir outra. Sorte da mosca que tosse. O bêbado pelo menos por ora não vai pegar mais naquele copo e beber o que resta sem gás. Não está suficientemente bêbado para isso. E o empregado quando vier recolher a loiça, mesmo que veja a mosca, não fará nada que faça notá-la à clientela. É má onda haver moscas numa cervejaria. Pegará calmamente no copo dando tempo à outra para se pôr na alheta.
- É por isso que gosto de ti. Admiro-te muito. Ficas sexy quando dizes alheta. Sabes tudo. Isso excita-me. Ai...
- Tás parva!
- A sério. Diz-me para onde vais agora ? Seguirei tuas asas, poderás fazer de mim o que te apetecer. Sou toda tua.
- Tu própria disseste que havia nos meus voos um padrão... Adivinha imbecil!
A mosca que ficou, ficou de rastos, prostrada junto a uma casca ainda com um resto de tremoço no seu interior. Ela sabia para onde ia voar a outra, sabia que a outra estava a executar a sequência de voos sempre iguais nº 101. Mas de alguma maneira, teria sido uma prova de amor a outra ter-lhe revelado o poiso pela sua própria boca. Não dissera. Estava de rastos e só o cheiro a tremoço aliviava a tensão dramática da situação.
Será que a mosca nem por um segundo pensara que a outra poderia ter razão, de facto nunca sabia para onde voava e que se existia um padrão, era um acaso ?... Ela não sabia, não estava consciente disso e poderia ter sido honesta para com a outra. Foi isto que a quarta mosca lhe explicou. Aproximara-se entretanto. Era uma mosca que estava sempre à espera destas situações onde podia servir de ombro amigo primeiro, consolo erótico segundo. Era assim que engatava as outras.
- Diz-me para onde me levas ? Com a tosse que tens, sugeria um sitio pouco húmido...
- Deixa-me pensar... Podemos ir para... para... já sei, para a...
Aquele cheiro a mosca morta e tremoço durante muito tempo não saiu do nariz da mosca que testemunhou o fim daquela breve história de engate.

segunda-feira, setembro 15, 2003

DVD
Neste verão inscrevi-me num clube de vídeo. Mau sinal. Mas foi. Ultrapassados os tramites burocráticos (exigiram-me comprovativos de residência, atestado de sanidade mental e diversos testes de paternidade) pude finalmente retirar do expositor o meu primeiro filme DVD por 500 paus. Uns dias antes, imagine-se, em pleno Julho, comprara o meu primeiro leitor de DVD. Péssimo sinal, preparação óbvia para umas férias muito caseiras. A minha habitual volta por outras paragens foi sacrificada por motivos técnicos alheios. O programa lá seguiu dentro de momentos com um saltinho a Espanha (tinha que ser, tinha mesmo que ser), interior sul. Coisa pouca mas deu para fazer o gosto ao vicio das viagens e dormir uma das noites numa ?hostal? ao som da algazarra que as baratas faziam no sótão. De volta a casa, aperfeiçoei o ritual da visita ao clube de vídeo, dominando a nomenclatura das etiquetas, a localização das diversas secções e prateleiras, descobrindo todas as funcionalidades do aparelho reprodutor de DVD. A minha mão adaptou-se maravilhosamente bem ao mais recente telecomando da casa e quando saía do sofá, dava por mim a frequentar as secções de DVDs em promoção dos hiper-mercados. Foi em Espanha num "Al Campo" que adquiri oficialmente o meu primeiro filme. "El Hombre Elefant", a obra prima de David Lynch por 1500 paus. Achado do caraças, com legendas em português e opção de ouvir John Hurt em Castelhano. Ao rever o filme, dei-me conta da minha crescente incapacidade em reter as histórias e os momentos dos filmes que já vi. Estava a rever um filme mas era quase como se fosse a primeira vez. Vá lá, tinha a ideia de que a fotografia era a preto e branco e acertei. É certo que haviam passados uns bons dez anos, mas conheço malta capaz de se lembrar da marca da mota que a Pamela Anderson montava em "Barb Wire" ou descrever ao pormenor a alucinante sequência final de "Ghostbusters"! Não é fantástico!? Eu não. Esqueço-me. As memórias com que fico dos filmes são difusas, imagens mentais desfocadas, pontinhas de linhas descosidas que não levam a nada. Fica apenas a ideia reduzida do plot. Curiosamente retenho os nomes dos actores, realizador, director de fotografia e um ou outro momento mais marcante ou então um pormenor técnico, tudo matéria irrelevante quando se pretende contar o que se viu a quem de direito. A recordação quase exclusiva e compulsiva deste tipo de pormenores quase que chega a ser assustadora. Por exemplo, actualmente não me sai da ideia aquela sequência do "Panic Room" do David Fincher, com a Jodie Foster e fotografia do Darius Kondji, em que a camera, qual impossibilidade à boa maneira de "Siegfried & Roy" passa por dentro da pega duma máquina de café depois de segundos antes ter estado no interior duma fechadura. Esta minha característica afasta no entanto de mim o fantasma da Alzheimer. Mas pelo sim pelo não, a empregada do clube de vídeo está avisada. Verificará sempre na base de dados se acaso não estarei a levar um filme já visto. Caso tal aconteça e não apresente uma boa desculpa, tem ordem para ligar para um número que só nós cá sabemos.
Emprego
Era o que receava. Passados que são 45 minutos, é como se já estivesse aqui há uma semana. No final do dia terão passado meses, anos, terei sido promovido mas à beira do limite legal. Aceitarei o pacote da pré-reforma e voltarei no dia seguinte para continuar a passar invisível pelo tempo.

De volta ao Blogger

Depois de uma passagem pelo Weblog, o espécie volta ao Blogger.